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FERNÃO CRUZSENTINELA![]() ZET GALLERY Rua do Raio, 175 4710-923 4710-923 22 ABR - 18 JUN 2025 ![]() ![]()
Sentinela é a sua exposição mais recente, na Zet Gallery em Braga, Capital da Cultura de 2025. Apresenta seis novos trabalhos, em conjunto com outros dois já realizados e expostos em 2023, e é pensada como uma instalação única sob a alçada dos dois conceitos fundamentais da sua prática: transformação e presença. Não se pense que o denominado azul é um convite a um mundo leviano pois, para quem conhece e acompanha o (já cunhado promissor) percurso de Fernão, sabe que por cima deste azul de dia claro, pendem as inquietações de um jovem adulto sobre a factualidade da vida: a passagem do tempo, a decomposição do corpo, a perda, a morte. Com o ambiente onírico lançado pela carpete, quis Fernão que o espectador se sentisse “uma criança que se acha adulto, ou um adulto que regride para criança”. Nesta oscilação entre maturidades - uma ampulheta líquida que dilui o presente e o passado para nos direcionar para o sonho - Fernão cria um “alfabeto emocional” que se encontra em suspenso: nada está verdadeiramente estático ou a mover-se, apesar de parecer desmenti-lo as peças petrificadas pela resina epoxy ou os fragmentos flutuantes representados nas pinturas. Tudo está à beira do Abismo (2023), prestes. Fernão está interessado em oposições que potenciem leituras cruzadas e fá-lo a partir do jogo de proporções, da transformação da matéria e da apropriação de objetos pessoais. O interesse pelo retorno a uma escala menor, infantil (não ingénua), manifesta-se sempre poeticamente num duo físico-emocional: no regredir do papel machê de Malabarista Anestesiado (2023), modelo fragmentado do corpo do artista que tende a encolher e ressequir pela evaporação da água; no cenário à Espera (2025) de brincadeiras, construído com roupas básicas amarradas entre si, que vão unindo objetos distintos - uma cómoda, uma cascata, uma rocha/nuvem, uma porta, bifurcando numa caixa de correio e na sua desproporcional chave (talvez o seu tamanho seja equivalente ao seu grau de importância); na disposição com ímans das mais de 150 gotas de Impossível (2025), retomando o gesto livre e fácil de compor com os objetos. A escolha destes mecanismos simples, que não pretendem ser nada mais do que a sua natureza honesta (não é isto a infância?), é articulada com uma manipulação inteligente dos materiais: Fernão transforma os mais facilmente perecíveis em materiais mais resistentes e duradouros. O cartão descartável passa a papel machê e ao bronze, o têxtil mole fica rígido por via da resina e cola. Esta abordagem permite-o aproximar, por pouco que seja, a esse “agarrar as coisas” que considera ser o mote do seu trabalho: para não as deixar escapar, para lhes prolongar a vida ou celebrar a ausência que as torna. E, assim, eis que nos vemos diante de belíssimos poemas, como as gotas da chuva opacas e enxutas, que deviam ser límpidas, brilhantes e húmidas; o pijama amarelado sem volume, estendido sobre a cómoda e duro como um corpo morto, embebido no suor de uma noite febril.
Detalhe de Espera (2025), Fernão Cruz. Vista da exposição Sentinela de Fernão Cruz, Zet Gallery, 2025. © Cláudia Handem
Se nos formatos tridimensionais, Fernão opta por uma expressão figurativa, nas pinturas Voo explosão (2025) e Um dia (2025), tende para uma imagem abstrata e bidimensional (ainda sem deixar de propor figuras). Já Nocturno (2025) de 6 metros, é uma combine painting que integra objetos do quotidiano. A pintura começa com um conjunto de roupas de adulto (calças, camisas, blazer, gravatas) e outros elementos até se despir por completo no último módulo em toalhas de banho com restos de carvão, a fazer lembrar o manto de arminho utilizado pelos reis (o imaginário infantil está sempre presente). Nocturno é o despojar da pele diurna quando se chega ao aconchego silencioso da imaginação, da qual as outras duas pinturas, cada uma à sua maneira, parecem pertencer. O desejo de parar o tempo, que ecoa por toda a exposição, não parece pressupor uma negação ao crescimento (síndrome de Peter Pan), antes uma vontade de ter mais tempo para refletir, aceitar e enfrentar os medos e receios que ele impõe, numa era em que o esvaziamento e a contemplação ativas são tarefas difíceis. Face a estes tempos conturbados em que nos vemos desarmados a vários níveis (e falo da geração Millennials, à qual pertenço e o artista também), é com um certo carinho que se vê as obras de Fernão, mesmo estando alimentadas dessa dureza anunciada e melancólica. Os objetos adquirem um significado especial, entre a pertença e a perda irremediáveis, com memórias doces e amargas a amparem a queda na busca de consolo. A simples cómoda faz-me reviver o encavalitar nas gavetas para procurar a roupa ou os panejamentos que pudessem construir a cabana para as histórias encantadas que se queria viver (e não simular), ou escolher o pijama que acolhesse os sonhos depois do banho nocturno, secados por toalhas grandes e macias, que ao nos cobrirem o corpo, faziam de nós, seres humanos diminutos, encantadores fantasmas. Sem prever tal relação, o tríptico Sentinela (2025) que dá nome à mostra, reporta essa figura espectral de um ponto de vista sombrio e solitário, fora de brincadeiras. Se, na sala ao lado, se pronuncia a elasticidade das mangas do tempo (matéria disforme), nesta os sobretudos estão tensos e imóveis “nas matrizes que o mundo já nos oferece”. Esse ser que se perdeu a meio caminho entre as incógnitas da vida, flutua invisível. É corpo que deambula, que vigia, que guarda, que está à escuta, à espera que algo aconteça, atento, aborrecido. É sentinela como o artista, afirma Fernão. O artista que, no seu exercício de resistência, se mantém receptivo ao mistério da espera. Sentinela reside na dúvida de ser um fantasma de roupão que nos prega um susto ou que se lança para nos abraçar. Ou será que é ele que foge, assustado? Figura pertencente à noite, o curioso é que esta exposição está carregada de luz, refletida no azul eletrizante, espantando tanto os visitantes como os seus fantasmas.
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